Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
Procurador Regional da República da 3a. Região
Na data de 22 de junho completei duas décadas e meia de Ministério Público Federal, assim como os meus colegas do 13o Concurso (que se prolongou por dois anos). É um intervalo significativo de tempo. Fosse um casamento, seriam bodas de prata. Estivéssemos numa empresa privada e receberíamos um “pin”, aquelas medalhinhas de pregar na camisa, vestido ou paletó. Eu fiz a conta e esses 25 anos representam 44,64% da minha vida. Desculpem pela exatidão, só não quis dizer “quase a metade”.
É uma data de forte repercussão pessoal. Eu vim de família humilde e sempre estudei em escola pública. Ingressar no MPF, tido à época - e ainda hoje - como um dos concursos públicos mais difíceis, pareceu-me uma grande vitória. Eu não prestei o exame atrás de dinheiro - juro! - nem de suposto prestígio social - juro de novo - mas porque, perdoem minha ingenuidade, achei que era uma maneira de mudar o mundo ou, mais modestamente, nosso país.
O Brasil de 25 anos atrás era injusto, desigual e discriminador, negando oportunidades a jovens talentosos e talentosas por razões de dinheiro, origem social, gênero, identidade sexual e raça. Achei que, como Procurador da República, poderia ajudar a mudar um pouco essas coisas. Eu o faria pelo método de levar aos tribunais a criminalidade econômico-financeira que, pensava eu àquela altura, sempre dá um jeito de escapar. E que se abastecia com recursos públicos. Como São Paulo é o centro financeiro também para esse tipo de prática, fiz minha carreira na capital paulista, começando por um gabinete na Praça da República, onde estavam as varas federais criminais.
Foi um erro, é claro.
Eu teria feito melhor se tivesse ido de cima a baixo no país, visto outras paragens, tido experiências diversas. Até minha promoção teria sido mais rápida, acredito.
O erro maior, evidentemente, estava baseado na suposição de que se mudam realidades com inquéritos, processos, denúncias, audiências, provas e recursos. Não é bem assim. A dinâmica das forças sociais é mais complexa: a história pesa, os discursos camuflam, os interesses se modificam para resguardar primazias.
Não estou dizendo que denunciar escândalos financeiros e ver aquele povo tendo que se defender foi inútil ou ruim. Sempre fui o tipo de Procurador que se considera o “acusador constitucional”, fazendo o melhor pelo mais precisado e exigente dos clientes, a comunidade. Peço escusas se firo sensibilidades, mas eu sentia satisfação profissional nessas causas, a meu ver, justas. E nunca fui adversário da ampla defesa ou dos advogados. Pelo contrário! Aos réus, nunca faltei com o respeito. É só o meu tipo de trabalho.
Hoje suponho ter superado aquela ingenuidade e penso que as transformações sociais - urgentes! - virão de outro modo: a educação e a política.
Admito: não superei nada, prossigo ingênuo.
Mudou o meu olhar para o papel do Estado em relação a câmbios sociais e econômicos. Ele é imprescindível, mas tende a favorecer corporações e estamentos, que nunca são os que mais precisam. Ficaria feliz se o poder público cuidasse da educação, saúde, justiça, segurança pública e transportes, além de sustentar a pesquisa científica. E se ele agisse, a todo momento, de maneira eficiente e inclusiva. Tenho arrepios quando ouço que serão criadas novas empresas estatais, que não é caso de respeitar limites de gastos ou que virá um fenomenal plano de desenvolvimento econômico.
A burocracia é uma força irresistível, que põe abaixo ideais ou se vale deles para sustentar a si mesma.
Minha carreira foi diversificada. Ao longo dos anos, funcionei em distintas áreas institucionais e vim a descobrir essa paixão, tardia e intensa, pelo Direito Eleitoral. A função de Ministério Público Eleitoral me trouxe vários contentamentos. Tenho até uma página na internet: "A Cachaça Eleitoral".
Não avançaremos sem a democracia mais plena. Zelar por ela é uma das tarefas que o artigo 127 da Constituição deu ao parquet.
O meu momento mais triste foi a derrota no júri do Cacique Veiron, de Mato Grosso do Sul, morto a mando de gente poderosa. Dei o meu melhor, junto com outros combativos companheiros. Outrossim, os julgamentos populares, embora juridicamente irrepreensíveis, podem, na imaginação de quem neles atua, trazer recortes de classe social. O cacique, imenso na intensidade de sua vida e na luta de sua gente - os índios guarani-kaiowás - era um desfavorecido em termos monetários. Acordo às vezes reexaminando se poderíamos ter feito mais do que fizemos.
Essa resposta eu não tenho.
Os momentos felizes foram vários. Aqui e ali conseguimos uns avanços, um aparelho para comunicação de pessoas surdas, um intérprete de libras, um colarinho branco bandalho cumprindo pena, a evitação de um desvio na administração pública, um político nefasto surpreendido com nossa impugnação de registro de candidatura, uma candidata “laranja" a menos…
É pouco para 25 anos, não há dúvida. Só que o Ministério Público nunca é um: é uma coletividade, é uma instituição. Os acertos de um Procurador somam-se aos acertos de outros, a atuação conjunta rende melhores resultados. O inconveniente é que erronias de um ou de poucos repercutem igualmente para todos.
E nós, os Procuradores e Procuradoras, temos a sorte de contar com um corpo técnico e funcional de primeira qualidade. Não faríamos nada sem o apoio decisivo dos servidores e servidoras. Eu não teria feito nada.
O MPF não passa por um bom momento. Muitos de nós nos sentimos desalentados com isso. O Brasil de agora não só permanece injusto, desigual, e discriminador, como piorou em outros aspectos. A instituição não se preparou bem para tempos árduos. E jamais esteve tão dividida, tão imersa em polarizações que separam também a sociedade.
Oxalá dias melhores venham.
Sou um otimista e permaneço assim ao menos há 25 anos. O país ainda fará valer a liberdade, a igualdade e a democracia que a Constituição de 1988 buscou assegurar. E, apesar das críticas necessárias que se poderão fazer, acho que ao Ministério Público Federal vale dedicar bem mais do que 44,64% de uma vida.