"A sessão do Supremo Tribunal Federal, de 14 de março de 2019 não foi boa de assistir. Sei que muitos não apreciam as transmissões em geral e dizem que elas, quando menos, são uma das causas para votos longos e polêmicas detalhistas. Eu sou a favor. “A luz do sol”, costuma dizer o Ministro Celso de Mello, citando Louis Brandeis, antigo juiz da Suprema Corte Americana, “é o melhor desinfetante”. No caso, é a luz do vídeo, que produz o mesmo efeito e aproxima aqueles homens e mulheres graves do cotidiano da gente comum, da sala de estar das famílias, das conversas no metrô, das padarias. Tanto mais se, no dia seguinte, trechos das discussões forem repetidos no noticiário matutino da televisão.
O “parceiro”, garçom da padaria onde tomo café em muitas manhãs, mais de uma vez me perguntou qual é meu trabalho, porque tendo a estar de terno e gravata às 8:30. Eu nunca disse a ele que sou do Ministério Público, muito menos federal, muito menos eleitoral. Sou professor, esclareci. É assim que ele me chama:
- O de sempre, professor?
- Manda, parceiro.
Pois hoje, ouvindo ao fundo o noticiário da televisão, ele resolveu me perguntar:
- Professor, por que estes caras brigam tanto?
- Porque cada um defende seu ponto de vista, parceiro.
- E essa agora, acabaram com a Lava Jato? Ninguém mais vai ser preso? Está tudo combinado com a Justiça Eleitoral?
Ao fundo, ouviam-se os votos da minoria que se formou sobre o envio das investigações de crimes conexos com eleitorais para a Justiça especializada. Pouco depois, notícia de uma postagem em mídia social de um colega Procurador da República, evidenciando desapontamento, seguida da opinião áspera, contundente e, a nosso ver, exagerada de um dos ministros que votou vencedor.
Escrevo aqui no “Cachaça” como se respondesse ao parceiro. Eu lhe diria que a regra do artigo 35 do Código Eleitoral não deixa margem à dúvida:
“ Art. 35. Compete aos juízes:
(...)
II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais (...)”.
E que este dispositivo está de acordo com o que prevê o Código de Processo Penal:
"Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:
(...)
V - a conexão ou continência;”
Mostraria a ele outro artigo do CPP:
“Art. 76. A competência será determinada pela conexão:
I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.”
Não é possível dizer, portanto, que a decisão do Supremo Tribunal Federal não teve adequado suporte legal. Por uma vez, ele não foi “ativista”, não fez uma intepretação inovadora. O Código Eleitoral, quando define competências dos órgãos da Justiça Eleitoral, foi recebido com força de lei complementar, de acordo com o artigo 121 da Constituição. A ligação entre crimes contra a administração pública (peculatos, corrupção ativa e passiva, licitações superfaturadas, dirigidas ou fraudulentas) e o financiamento de campanhas eleitorais não surpreende ninguém.
Ainda assim, parceiro, a decisão do Supremo Tribunal Federal não foi a melhor.
O problema não é, como se disse muito, a falta de estrutura da Justiça Eleitoral para processar e julgar crimes. Se falta de estrutura fosse critério de competência, teríamos que fazer um exame muito sério dos meios materiais e humanos à disposição de um grande número de comarcas país afora. Seria um festival de conflitos de competência.
Falta de estrutura se resolve com estrutura, recursos humanos e materiais. Não cabe olvidar que a polícia judiciária eleitoral é a polícia federal, a mesma que atua nos crimes contra a administração pública. As condições de trabalho que a força tarefa da Lava Jato obteve são raras em todo o cenário do Ministério Público Brasileiro. Podem e devem ser replicadas também no âmbito eleitoral.
Tampouco nos anima a crítica de que, por ter juízes sem vitaliciedade e, nos tribunais, membros oriundos da advocacia, a Justiça Eleitoral seria mais “suspeita” para examinar crimes contra a administração pública. Discordamos. Se vitaliciedade é condição para um julgamento isento, é caso de se proibir juízes com menos de dois anos de atividade de julgarem matéria penal. Se a presença de julgadores oriundos da advocacia compromete a imparcialidade do julgamento, que se vá o quinto constitucional nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais. Esse mesmo quinto que acolhe, também, membros do Ministério Público. A propósito, no Superior Tribunal de Justiça nem é “quinto”, é “terço”.
O argumento de que crimes em detrimento da União Federal devem ser julgados pela Justiça Federal esbarra na constatação de que a Justiça Eleitoral é, toda ela, federal. Assim como o Ministério Público que atua perante ela (os Promotores Eleitorais agem por delegação do Ministério Público Federal, nos termos do artigo 79 da Lei Complementar 75/93).
A nosso ver, a questão é saber se esta regra do Código Eleitoral de 1965 deve ser aplicada sem temperamentos diante das características do crime do artigo 350, a conduta que atrairia todas as demais. O tipo penal é o seguinte:
“Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:
Pena - reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.
Parágrafo único. Se o agente da falsidade documental é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo ou se a falsificação ou alteração é de assentamentos de registro civil, a pena é agravada.”
Nossa resposta é negativa. Pretender que essa conduta de omissão ou falsidade contábil (é disso que se trata) seja apta para atrair, por conexão, crimes contra a administração pública e lavagem de dinheiro parece equivocado, desproporcionado. É como fixar a competência para o julgamento de um crime de latrocínio porque, depois dele, os agentes chamaram, noutro lugar, alguém de “trouxa”, praticando o crime de injúria. As hipóteses de conexão do art. 76 do CPP não parecem, a princípio, se aplicar: não são os mesmos agentes necessariamente, um crime não é praticado em razão do outro, para obter impunidade ou vantagem, e a prova das infrações antecedentes não condiciona a prova exigida pelo art. 350. Não se nega a possibilidade de que a conexão exista, mas não há elementos para afirma-la a priori. A ligação política entre os crimes contra a administração e o caixa 2 eleitoral não se traduz em liame fático a justificar a conexão.
A conexão inexiste, a princípio, na hipótese do chamado "Caixa 1", ou seja, a declaração correta e abundante de valores de doação eleitoral, como forma da lavagem de dinheiro. Como esta declaração não perfaz o crime do artigo 350 - não é crime eleitoral usar recursos espúrios na doação eleitoral, desde que declarados - não há falar em conexão nesse caso, a não ser que o agente omita a origem da doação.
É certo que a decisão do STF não manda tudo para a Justiça Eleitoral, como se supôs, apressadamente. O que ela faz é dar à justiça especializada a palavra sobre a sua própria competência estendida ou não. A via interpretativa poderia ter alcançado solução melhor: permitindo que os inquéritos e processos seguissem na Justiça Comum Federal, até prova concreta das hipóteses de conexão.
- Decisão judicial se cumpre, parceiro.
Ainda que a critiquemos.
A impunidade no Brasil é um monstro de mil faces. O pressuposto básico do Estado Liberal (não estou nem falando do Estado Democrático de Direito) é o de que ninguém esteja acima da Constituição e das leis. Infelizmente, em nosso país, não é costumeiramente assim. Ricos, engravatados e apadrinhados largam com vantagem. Existe até quem defenda que, para os crimes que usualmente praticam (“sem violência ou grave ameaça”), a pena privativa de liberdade não devia ser prevista. Que se prendam somente os pobres, é o que vai implícito.
A força tarefa da Lava Jato prestou e presta um inestimável serviço ao Brasil, mostrando caminhos para enfrentar a corrupção. Digo isso embora, por índole, prefira atuação mais discreta. Como Procurador Regional Eleitoral, farei o que puder para assegurar a aplicação da lei penal, também perante a Justiça das Eleições.
Mas é caso de alterar, com urgência, o artigo 35 do Código Eleitoral. Justo ao julgá-lo – que pena! - o Supremo Tribunal Federal não foi ativista."
Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
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