LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES
I.
O Brasil é um país violento, o que já é muito ruim. Essa ruindade piora quando constatamos que, também nas eleições, a violência campeia, degenerando o debate de ideias em agressões de toda a ordem. Ocorre que o Brasil é também um país muito desigual, o que, sem dúvida, contribui para a violência.
A desigualdade se espraia em diversos campos, entre eles, o da representação política: as mulheres, por exemplo, conquanto sejam maioria do eleitorado, representam pouco mais do que 15% dos deputados federais ou senadores. Números igualmente inauspiciosos são encontrados quando observamos os eleitos da comunidade negra ou parda, majoritária em nosso país.
As vítimas das agressões não raro integram estes setores politicamente vulnerabilizados: mulheres e negros, aos quais se pode acrescentar os indígenas, quilombolas e integrantes da comunidade LGBTQI+. É uma violência que pode ser praticada justamente para impedir ou estorvar que eles exerçam, plenamente, seus direitos político-eleitorais.
Temos que violência e desigualdade são más influências para a democracia e conspiram, ao longo do tempo, para enfraquecê-la e substituí-la.
É nesse contexto que vieram recentemente ao ordenamento jurídico brasileiro dois tipos criminais. O primeiro é o crime de violência política contra as mulheres, incluído no Código Eleitoral, art. 326-B, por força da Lei 14.192, de 4 de agosto de 2021. O segundo é o crime de violência política, trazido para o art. 359-P do Código Penal pela Lei n. 14.197, de 1º. de setembro de 2021, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Esta última lei revogou - algo tardiamente mas sempre em tempo - a antiga Lei de Segurança Nacional, pouco afinada com a Constituição de 1988.
O presente texto se destina a estudar estes dois tipos penais.
II.
O tipo do art. 326-B do Código Eleitoral tem a seguinte redação:
Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multaParágrafo único.
Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher:
I - gestante;
II - maior de 60 (sessenta) anos;
III - com deficiência.
É crime doloso, exigindo a especial finalidade no comportamento do agente que é impedir ou de dificultar a campanha eleitoral ou o desempenho de mandato eletivo por parte de uma mulher. É crime formal, porque não se exige que esta finalidade tenha sido alcançada para que seja consumado, bastando praticar os verbos típicos com esse desiderato. Estes, a propósito, são “assediar”, “constranger”, “humilhar”, “perseguir” ou “ameaçar”, o que leva a considerar que delitos com penas menores, como o de constrangimento ilegal, art. 146, a ameaça, do art. 147, a perseguição, art. 147-A e também o crime de “violência psicológica contra a mulher”, art. 147-B, todos do Código Penal, serão absorvidos pela conduta em estudo, presentes seus requisitos.
É crime comum, porque pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive por mulheres.
É crime vago, porque tem como vítima – como ocorre com todos os crimes eleitorais – a sociedade. Este último aspecto deve ser ressaltado: embora as condutas sejam voltadas contra mulher ou mulheres, estas são vítimas secundárias do delito. Outrossim, o tipo não fala em mulheres em geral, mas naquelas que são “candidatas”, ou seja, já tenham requerido o registro de suas candidaturas, bem assim como naquelas que já detém mandato eletivo, direito que se formaliza com a diplomação. Portanto, a violência política tutelada por este tipo é aquela subsequente ao pedido de registro de candidatura, não incluindo situações que se voltassem para obstar ou dificultar essa condição.
Somos críticos da opção legislativa que priorizou apenas a condição de gênero, como norte para a criminalização. Por que deixar de fazê-lo em prol de outros segmentos também politicamente vulneráveis, como a comunidade negra, LGBTQI+, indígena ou quilombola? Nesta limitação reside uma das principais diferenças entre este crime do art. 326-B do Código Eleitoral e o crime do art. 359-P do Código Penal.
A propósito, o conceito de mulher inclui as transexuais, como já preconizava, em relação à Lei Maria da Penha, o Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva do Ministério Público de São Paulo[1].
O bem jurídico, no caso das condutas voltadas contra a mulher candidata, é a lisura das eleições e higidez do processo eleitoral. Já as condutas voltadas contra o desempenho de mandato eletivo feminino inauguram um novo bem a ser protegido, justamente a regularidade do exercício do mandato. Não se pode deixar de notar a tendência de trazer, para o âmbito da Justiça Eleitoral, questões que vão além das campanhas eleitorais. É possível indicar bens jurídicos secundários, relacionados à incolumidade psicológica da mulher candidata ou mandatária.
É crime de conduta vinculada. Embora o tipo diga que as verbos podem ser praticados “por qualquer meio”, na segunda parte da descrição exige que se utilize de “menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia”. Novamente, lamenta-se a opção legislativa, que considera “cor”, “raça” e “etnia”, não como itens autônomos de discriminação, mas como predicados da conduta ilícita voltada apenas contra a mulher.
As penas são brandas: 1 a 4 anos, na figura principal. Esta pena não autoriza, nos termos do art. 313 do Código de Processo Penal, a decretação de prisão preventiva. Essa medida restritiva é admissível, todavia, diante da figura mais grave, na qual a conduta alcança mulher, gestante, maior de sessenta anos ou com deficiência e tem a sanção aumentada de um terço. É crime que não permite acordo de não persecução penal, pois o artigo 28-A, inciso X, do Código de Processo Penal diz que essa medida não é possível “nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor”.
Como todos os crimes eleitorais, é de ação penal pública incondicionada. Cabe ao Ministério Público Eleitoral, diante dos elementos de informação que lhe chegarem, formar a opinio delicti e, se o caso, promover a ação penal.
A competência para processo e julgamento é da Justiça Eleitoral, como se dá para todos os crimes previstos na legislação eleitoral.
II.
Menos de um mês após a promulgação e publicação da Lei 14.192, adveio a Lei 14.197, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Era lei requerida e aguardada pela cidadania, tendo em vista a óbvia incompatibilidade entre a Lei de Segurança Nacional, de 1983 e o regime de liberdades trazido pela Constituição de 1988. Sem embargo, o Estado Democrático de Direito tem seus adversários e uma lei que tipificasse condutas que se voltassem contra ele era estritamente necessária.
Entre os novos tipos penais trazidos pela Lei 14.197/2021 está o seguinte:
Violência política
Art. 359-P. Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
(VETADO)
É crime doloso, de conduta e resultado, consumando-se com a restrição, impedimento ou dificultação do exercício de direitos políticos de qualquer pessoa. Admite, portanto, a tentativa. O comportamento é vinculado: emprego de violência física, sexual ou psicológica. A motivação é o sexo, a raça, a cor, a religião ou a procedência nacional do titular dos direitos políticos.
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo e a vítima direta é, a nosso ver, a sociedade, colocando-se a pessoa que teve seus direitos restritos, impedidos ou dificultados como vítima secundária. Este aspecto é essencial para a intelecção do novel tipo: ele adveio na Lei de Proteção ao Estado Democrático de Direito e foi inserido no Título dos “crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral”.
O bem jurídico que tutela, portanto, não é, primeiramente, o direito individual à fruição dos direitos políticos, mas, ao revés, a regularidade do funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral. Até por esta razão, ele está inserido no Código Penal e não no Código Eleitoral.
Não se exige da vítima secundária nenhuma condição especial, salvo a de ser titular de direitos políticos, não suspensos nem perdidos. É, portanto, o brasileiro, nato ou naturalizado e o português que, nos termos do artigo 12, § 1º. da Constituição, estejam na condição de exercer direitos políticos. Estes direitos, convém indicar, são aqueles positivos, consistentes em prerrogativas dadas aos cidadãos, entre eles votar, disputar cargos públicos eletivos, criar ou pertencer a partidos políticos e manifestar-se.
Entendemos que todos os crimes da Lei 14.197/2021 são crimes políticos, ou seja, atentam, em tese, contra o Estado Democrático de Direito. É como indica o próprio Código Penal, que os recebeu no Título “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Não é acaso que esta lei tenha justamente revogado a anterior Lei de Segurança Nacional que, de forma indisputada, reunia o catálogo dos crimes políticos em nosso ordenamento. Por esta razão, à luz do artigo 109 da Constituição Federal, são crimes de competência da Justiça Federal, a quem cabe julgar “IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.
Todavia, o que se nos assemelha mais provável é a conexão desta conduta típica com outro crime, eleitoral - por exemplo, o próprio art. 326-B - atraindo a competência da Justiça Eleitoral, por força do art. 35 do Código Eleitoral.
O regime destes crimes, importa indicar, autoriza recurso ordinário, ao Supremo Tribunal Federal, das decisões proferidas, art. 102, II, da Constituição Federal. A nosso ver, este recurso é cabível das decisões dos Tribunais Regionais Federais, embora exista também a interpretação de que há um “salto” de instâncias, pulando do juiz federal diretamente para o Supremo Tribunal Federal (é nesse sentido a decisão do STF na RC 1468 - segundo, Rel. Min. Ilmar Galvão, de 23.03.2000).
Existe a compreensão, original e interessante, de que, na verdade, a Lei 14.197/2021 não trouxe uniformemente em seu bojo crimes políticos, até pela ausência de dispositivo como o que existia na revogada Lei de Segurança Nacional, segundo a qual diante de concurso de crimes previstos na legislação comum, dever-se-ia levar em conta, art. 2º., “I - a motivação e os objetivos do agente; II - a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior”.
Rogério Sanches pondera que os crimes políticos seriam aqueles objeto do mandado expresso de criminalização do art. 5º. XLIV, da Constituição: “XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” e que os crimes da Lei 14.197 não se coadunam com aspectos dos crimes políticos, como a previsão do art. 64 do Código Penal de que, para geração de reincidência: II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos”.
Ousamos, todavia, discordar. A adesão da Lei 14.197/2021 ao mandado de criminalização do art. 5º, XLIV da Constituição é, certamente, incompleta, mas a lei define crimes como “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, “Golpe de Estado”, “Atentado à soberania” e “Atentado à integridade nacional”, que, decididamente, se inserem no campo exigido por aquela ordem de criminalização.
Como sugerimos em nossa obra “Crimes Eleitorais”:
“Crimes políticos são aqueles que tutelam a soberania nacional e a segurança institucional do Estado (nos crimes contra a segurança nacional, Lei 7.170/83), se constituem em infrações político-administrativas sem contornos de tipicidade penal (os crimes de responsabilidade, Lei n. 1079/50 e Decreto-Lei 201/67) ou representam invectivas contra opções político-ideológicas”
É certamente no segundo sentido, o dos crimes de responsabilidade, que deve o artigo 64, II, do Código Penal ser interpretado.
Por outro lado, a lei que atende ao mandado de criminalização não está impedida de, além de atendê-lo, trazer acréscimos, como poderia o legislador fazer em outra lei. É por esta razão que não entendemos o art. 359-P como imprescritível, condição que só mesmo a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático reúne.
Veja-se decisão do Supremo Tribunal Federal, embora referindo-se a revogada Lei 7.170/83:
“1. Crimes políticos, para os fins do artigo 102, II, b, da Constituição Federal, são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais e, por conseguinte, definidos na Lei de Segurança Nacional, presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1º e 2º do mesmo diploma legal. 2. “Da conjugação dos arts. 1º e 2º da Lei nº 7.170/83, extraem-se dois requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i) motivação e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. Precedentes” (RC 1472, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Rev. Ministro Luiz Fux, unânime, j. 25/05/2016). – RC 1743, rel. Min. Luiz Fux, j. 14.11.2017
É por esta razão que, a despeito de nossa simpatia pessoal, não entendemos que a figura do art. 357-P seja modalidade de racismo, o que a faria imprescritível. Apesar da menção a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (além de “sexo”), não se tem aqui a proteção à dignidade da pessoa humana como bem jurídico. É crime “contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral”. Se a menção a raça, cor, etnia for suficiente para incluir a conduta como modalidade de racismo, então o crime eleitoral do art. 326-B também o será.
O crime do art. 359-P do Código Penal é de ação penal pública incondicionada e, com seus limites de pena (3 a 6 anos) autoriza a decretação de prisão preventiva. Sendo sua pena mínima inferior a 4 anos, o acordo de não persecução penal é, também, admissível (art. 28-A do CPP).
Com os elementos acima podemos examinar um último tópico: a Lei 14.197 e seu artigo 359-P, da violência política, revogou o artigo 326-B do Código Eleitoral?
Nossa resposta é negativa.
Como visto, o crime eleitoral alcança apenas condutas que se voltem contra candidatas e mandatárias eleitas. A proteção diante de práticas ofensivas ao direito de se candidatar ou de exercer o mandato – que se tem como mais grave - advém somente do crime contra o Estado Democrático de Direito. Até por esta razão, justifica-se a discrepância de penas: 1 a 4 anos, para o crime do art. 326-B do Código Eleitoral; 3 a 6 anos para o crime do art. 359-P do Código Penal. Outra razão é que o crime eleitoral é formal, não exigindo a produção do resultado material, ao passo que o crime do art. 359-P é de conduta e resultado.
Não se ignora que o crime eleitoral restringe-se à mulheres, ao passo que o crime do art. 359-P alcança qualquer pessoa. Por outro lado, o crime eleitoral descreve com maior largueza comportamentos que prejudicam a candidatura ou exercício do mandato (por mulheres).
Por fim, nos ocorre que, à exemplo do que ocorria com a revogada Lei de Segurança Nacional, a jurisprudência pode se inclinar para dizer que, somente condutas aptas para produzir impacto no Estado Democrático de Direito são objeto da Lei 14.197/2021, não sendo suficiente a mera subsunção dos fatos a uma de suas normas, até porque, usualmente, são condutas previstas também no Código Penal ou em outras leis penais.
Nossa conclusão é que o art. 359-P do Código Penal alcança as condutas de lançar-se candidato, votar e exercer o mandato: se qualquer destes for impedido, é o crime contra o Estado Democrático de Direito. Se houver a candidatura e o mandato (de mulheres) e estes forem objeto de condutas de turbação, incide o art. 326-B do Código Eleitoral. A norma genérica e distinta não revoga a norma anterior, específica.
É caso de registrar que, no Projeto de Novo Código Eleitoral, o tema recebe tratamento mais abrangente, incorporando a redação do atual art. 326-B.
Segue quadro com as diferenças entre os tipos ora estudados:
Art. 326-B do Código Eleitoral | Art. 359-P do Código Penal | |
Verbos Típicos | Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar | Restringir, impedir ou dificultar |
Modo de cometimento do crime | Qualquer meio que envolva menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia | violência física, sexual ou psicológica |
Sujeito ativo | Qualquer pessoa | Qualquer pessoa |
Sujeito passivo | A sociedade | A sociedade |
Elemento subjetivo | Dolo específico de impedir ou de dificultar a campanha eleitoral ou o desempenho de mandato eletivo por uma mulher | Dolo genérico |
Consumação | Crime formal | Ocorre com a restrição, impedimento ou dificultação do exercício de direitos políticos |
Competência | Justiça Eleitoral | Justiça Federal |
Setembro de 2021
Foto: trecho da capa do livro "Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral", Ed. Atlas, 2a. ed., 2018, concebida por Leonardo Hermano.
Notas de rodapé:
1)http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/acoes_afirmativas/inc_social_lgbtt/Diversos_LGBTT<a href="applewebdata%3A//92586979-8748-4C0C-A9E3-
2) Editora Atlas, 2ª. edição, São Paulo, 2018, p. 15.