Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
O país precisa de um novo Código Eleitoral. O projeto, ora em tramitação no Senado, tem aspectos positivos (o novo regime das desincompatibilizações, as previsões penais e processuais penais, a adaptação a decisões da Justiça Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, etc). Todavia, há pontos muito controversos que, quando menos, deveriam merecer maior tempo de reflexão e debate junto à sociedade civil. Alguns deles são relacionados abaixo.
1. O fim da cota de gênero
A versão trazida pelo Relator, Senador Marcelo Castro acaba com a cota de gênero, cujo objetivo é promover a igualdade política das mulheres nas casas legislativas. Onde a lei atual diz que os partidos "preencherão", trinta por cento das vagas com mulheres, se passa a dizer que eles "reservarão". Para o Senador, o modelo atual cria injustiças. Ele entende que será suficiente assegurar a destinação de 30% dos recursos utilizados nas campanhas para as mulheres. Não haverá possibilidade do ajuizamento de ações eleitorais em face das chamadas "candidatas fictícias". Entendemos tratar-se de um grave retrocesso. A já pequena participação das mulheres nas casas legislativas vai diminuir ainda mais. E, dada a autonomia partidária, a destinação de recursos às candidatas proporcionais é necessária, mas insuficiente: os partidos podem verter todo o dinheiro numa única candidata!
2. O prazo insuficiente para as ações eleitorais de abuso
São ações que imputam condutas de graves abusos de poder, aptas para prejudicar a regularidade da disputa, a igualdade dos candidatos e a liberdade de voto do eleitor. O prazo sugerido - 15 dias a contar das eleições - é claramente insuficiente para que se possa coligir as provas necessárias. Atualmente, para fins de comparação, este prazo é a data da diplomação ou 15 dias após este ato. Os prazos atuais conciliam de maneira melhor a necessidade de estabilização dos resultados e a fiscalização da regularidade do pleito.
3. A gravidade "relativa" da compra de votos
É próprio das ações cassatórias a exigência de que, somente em casos graves, ocorra a cassação do registro, diploma ou mandato. Este exame é cometido ao Judiciário, examinando as circunstâncias do caso concreto. A única exceção, na qual a demonstração cabal do fato impõe a cassação do registro/diploma/mandato é a captação ilícita de sufrágio. Nesse caso, a lei presume o desvalor da conduta, que caracteriza mercancia ilícita do voto, corrompe o eleitor, vicia a sua vontade e impõe imbatível desvantagem a candidatos propositados. O projeto altera isso e relativiza a rejeição a esta prática malfazeja. Diz que também nela, a cassação dependerá da gravidade dos fatos. Passa-se para o Judiciário uma quantificação que nos parece esdrúxula: qual a quantidade ou percentual de votos cuja compra se considerará grave? Um por cento do eleitorado? Meio por cento? Seria possível, então, numa grande cidade, comprar dez mil votos e receber somente uma multa?
4. O fim da inelegibilidade superveniente
O projeto diz que a "ação de desconstituição do diploma", que substituirá o atual recurso contra a expedição do diploma, só poderá versar sobre inelegibilidades constitucionais. E se, depois do registro e antes das eleições, o candidato for condenado, em decisão colegiada, por crime gravíssimo? E se ele descumprir as regras de desincompatibilização? E se ficar demonstrado que ele falseou os documentos exigidos por lei para o registro? Ests exigências são legais, não constitucionais.
5. O agravo: método para tornar o processo judicial eleitoral mais lento
A regra do processo judicial eleitoral atual é a seguinte: as decisões interlocutórias, ou seja, as que julgam incidentes mas não encerram o processo, não são recorríveis de imediato e não se submetem a preclusão, podendo ser apresentadas ao ensejo de recurso contra a decisão definitiva. Logo, atualmente, não se admitem agravos de decisões interlocutórias. Esta é uma das razões pelas quais o processo eleitoral é significativamente mais rápido do que os seus congêneres na Justiça Comum. Esta celeridade interessa a toda a sociedade e, também, aos partidos e candidatos, pois ajuda a estabilizar as relações jurídico-eleitorais em tempo ótimo. O projeto introduz os agravos nos feitos eleitorais. O resultado será maior delonga no processo e, além disso, a instauração de uma jurisdição compartilhada entre juízos e tribunais e entre estes. A cada decisão que desagrade uma parte, um agravo. O recurso estava com o juiz eleitoral, mas irá seguidamente ao tribunal, e voltará, e poderá ir de novo, e …. Ou irá de um tribunal a outro, e voltará àquele, até que… Uma jurisdição em “zigue-zague”. A duração razoável do processo eleitoral – hoje de um ano, conforme a Lei 9.504/97 – nunca será alcançada.
6. Inelegibilidade baseada no regime de cumprimento da pena e não no crime
Atualmente não geram inelegibilidade crimes culposos ou de ação penal privada. Para os demais, o desvalor que conduz à inelegibilidade é reconhecido na conduta criminosa, não no tipo de cumprimento de pena fixado. Isto muda com o texto proposto. Perde-se objetividade e segurança na regra e faz-se confusão entre política criminal descarceirizadora e desvalor da conduta. Se a novação passar, duas pessoas condenadas pelo mesmo crime poderão ser, uma delas, considerada inelegível e a outra, não. Será o Judiciário – e não a lei – a decidir.
7. Intersecção entre inelegibilidade e suspensão dos direitos políticos, em benefício de quem sofrer condenação criminal mais grave
O desconto, no prazo de oito anos de inelegibilidade, do período que medeia a decisão colegiada e a decisão final - chamado de “detração” - é correto. O projeto diz, porém, que, art. 170: "§ 1º Em quaisquer das hipóteses previstas neste artigo, a inelegibilidade não ultrapassará o prazo de 8 (oito) anos". Essa previsão produz efeito equivocado e desproporcional. Os condenados a crimes graves, cuja pena seja severa, superior a oito anos, não terão inelegibilidade alguma após o encerramento do processo, pois o período de oito anos incidirá dentro do período de suspensão dos direitos políticos. Mas se a pena for branda, aí sim, a inelegibilidade incidirá com força!
8. A quarentena de militares, policiais, juízes e promotores
Juízes, promotores e policiais ficam sujeitos a uma "quarentena" de quatro anos, se quiserem, após saírem das carreiras respectivas, concorrer a cargos públicos. Conceda-se, para argumentar, que, por se tratar de carreiras "especiais", seus integrantes recebam tratamento distinto. Porém: i) o tempo exigido equivale a metade daquele imposto a quem tenha cometido crimes ou praticado atos abusivos nas eleições (oito anos); ii) é um período oito vezes maior do que o exigido para ocupantes de altos cargos da administração pública que queiram disputar as eleições (seis meses); iii) não é extensível a outras categorias administrativas típicas de Estado, como defensores públicos, advogados públicos, auditores fiscais, etc. Falta proporcionalidade.
9. A improbidade que só vale se for dupla
O projeto, art. 170, mantém a ncessidade de que somente a dupla condenação por improbidade gere inelegibilidade. Não basta "causar dolosamente lesão ao erário" ou "enriquecer ilicitamente". Ignora que a própria lei de improbidade prevê estas figuras como autônomas, em tipos diversos. Causa espécie se permitir candiatura a alguém que, dolosamente, enriqueceu ilicitamente ou que, dolosamente, causou prejuízo ao erário, só porque as duas condições não ocorreram juntas.
10. Partidos políticos e dinheiro público: escassa responsabilização
O projeto, art. 69, diz que as contas dos partidos politicos devem ser examinadas pela Justiça Eleitoral em processo que deverá estar julgado em três anos, sob pena de extinção. Mas a demora pode ter advindo do exercício da ampla defesa ou da complexidade dos fatos. Sem falar que, descobertas irregularidades graves, o partido ficará sujeito à devolução dos valores (ufa!) e à multa que não poderá superar trinta mil reais. Parece pouco, considerando que as despesas partidárias são, predominantente, sustentadas com recursos públicos.
11. 9. A restrição, ao Ministério Público, de alegar matéria de ordem pública
A proposta, art. 729, §4º, diz que: "É vedado ao Ministério Público Eleitoral, no parecer, suscitar impedimento à candidatura que não foi objeto de diligência, impugnação ao registro de candidatura, notícia de inelegibilidade ou arguição de ofício de juiz ou relator nos prazos para tanto". A vedação produzirá o efeito prático de forçar o Ministério Público a ajuizar, ele mesmo, ação de impugnação diante de qualquer fato que lhe chegar ao conhecimento, para não ficar "na mão" do quanto alegado pelas partes... Atualmente é suficiente a apresentação do óbice em parecer, reabrindo-se, se o caso, oportunidade para defesa. Assim, se a intenção da proposta era acelerar o andamento dos feitos de registro, o resultado será exatamente o contrário: pareceres que se transformarão em ações eleitorais, criando enorme trabalho adicional para o juízo eleitoral. Além disso: considerando que o juiz eleitoral pode decidir de ofício, ou seja, sem provocação das partes, como justificar que o órgão do MP, ciente de um impedimento a candidatura, deva silenciar?
Maio de 2024